Digerindo o capitalismo e as boas intenções da classe média engajada
Eu sei que existe toda boa intenção do mundo por trás da classe média que se engaja para defender políticas de esquerda. Eu sei disso!
O que me chateia é que essas pessoas se apegam a estatísticas, a histórias de desconhecidos, a discursos prontos... e não querem ver a realidade!
Esmola não dá qualidade de vida. Não dá esperança. Não dá dignidade. Qualquer tipo de assistencialismo, ao mesmo tempo que inegavelmente ajuda num primeiro momento, destrói a autoestima de quem depende dele. Ninguém quer precisar. Todo mundo quer ter condições iguais ou melhores para competir na selvageria do mundo. Quando uma pessoa inteligente insiste em defender que a solução para as desigualdades sociais está nas políticas assistencialistas, ela não percebe que está defendendo um padrão de existência no mundo no qual quem nasce em desvantagem não tem condições de competir com os privilegiados e, por isso, deve ser compensado. Se a sociedade não cansa de enfatizar que não dá para largar do mesmo ponto na corrida pelo sucesso, por que diabos alguém que sabe que não tem a menor chance perderia o tempo correndo? Como alguém conseguiria alimentar a esperança de vencer se já recebe o prêmio de consolação antes mesmo de tentar?
Pobre come pouco. Não se alimenta de 3h em 3h, nem com os alimentos da moda. Quando a situação aperta, não é impossível dar um jeito de comer. Seja através da generosidade de conhecidos (ou mesmo desconhecidos), por projetos que levam refeição aos moradores de rua, seja roubando alguma besteira das Lojas Americanas ou revirando o lixo do McDonald's no final do expediente. É possível ser bem pobre e não passar fome. Até porque o corpo acostuma com pequenas refeições espaçadas. A fome é proporcional ao quanto você come. Se você sente fome toda hora, é porque você come demais. Pobre aprende a viver com a barriga vazia sem reclamar. Acostuma.
Pobre também não tem essa história de feminismo. Toda garota pobre aprende ainda na infância que deve casar e ter filhos o quanto antes. Por muito tempo cheguei a questionar a validade dessa cultura, mas analisando friamente o incentivo para as garotas pobres casarem cedo, consigo encontrar uma série de motivos que dão muito sentido a essa prática:
1) Deixar o barraco pra trás. O que significa que vai sobrar mais comida e espaço pra quem fica;
2) Aproveitar a beleza da juventude para tentar fisgar um bom partido, como um coroa rico ou um jovem herdeiro ingênuo o bastante para se entregar a um amor fadado a dar preju;
3) Os filhos funcionam como garantia. Se a relação estremecer, servem para chantagear emocionalmente o maridão. Se tudo der errado, viram pretexto para arrecadar ajuda financeira de qualquer pessoa com algum coração. Com um pouco de insistência, em 12 anos passam a complementar a renda da casa. Para a mulher pobre, filho é patrimônio.
Terrível, né? Mas é assim que funciona. A pobre que não casa cedo tende a ficar solteirona. Ou, no mínimo, perde os melhores maridos disponíveis no mercado.
No fundo, tudo gira em torno da dignidade. Marido, filhos, casa, aparência... é tudo patrimônio!
Trabalho? Não, trabalho não é patrimônio. Trabalho é uma piada. Último recurso. Não compensa.
De que adianta vender sua vida para no final do mês não ter o suficiente para exercer plenamente o capitalismo? Salário mínimo não muda a vida de ninguém. Nem dois salários mínimos pagam as contas de uma casa no subúrbio! E olha que tem muito bacharel no mercado que não consegue ganhar 3 salários mínimos!
Quando você trabalha por um salário mínimo, o que você ganha, na verdade, é cansaço e desgaste emocional. Você se sente sem valor. E compensa isso comprando uma roupa mais cara, um celular melhor, um sapato melhor... Afinal, você trabalhou o mês inteiro! Você merece! Ou seja, você trabalha para se cansar e aumentar os gastos! No final do mês, a conta tá no vermelho do mesmo jeito.
Ah, mas pode trabalhar para pagar os estudos! Sim, pode. Mas só vai pagar mesmo, porque a disposição para estudar pra valer não vai rolar. Os professores vão ser compreensivos e vão deixar o pobre se formar apesar de tudo. Quando chegar a hora de arrumar o emprego de nível superior, o pobre vai se ver numa dinâmica de grupo, ouvindo as histórias de intercâmbio de seus concorrentes. Vai se comparar com eles e se sentir um lixo. "Que pessoas bonitas e inteligentes! Que roupas bonitas! Poxa, um dia quero ser assim também!"
O pessoal do RH sequer dá um feedback sobre a dinâmica.
As pessoas da dinâmica comentaram sobre uma festa que parece interessante. O pobre vislumbra que andar com as pessoas que são como ele quer ser pode ajudar a acumular capital social e içar ele até o mesmo patamar. Aí o pobre compra uma roupa tão bonita quanto a deles e vai na festa, que custa os olhos da cara. Ele descobre que consumidores têm direitos e que eles podem ser exigidos! Ele descobre que, disfarçado de classe média, até que ele faz sucesso na balada playba.
Acaba rolando um envolvimento amoroso na balada playba. Mas quando o pobre resolve falar onde mora, repentinamente, a pessoa muda. Entra numa de "amizade colorida"... Porque nunca se sabe, né? O pobre volta a se sentir um lixo. Mas não tem problema. É só continuar frequentando o mundo playba. Finja até conseguir ser um deles!
Um dia, alguém repara - em alto e bom som - que o pobre não varia muito as roupas. Começam rir disso por suas costas. E se questionam: "porque ele não investe mais na aparência?"
O engraçado é que o playba não aceita que o pobre é pobre. Porque rico adora falar que é pobre. Então presume-se que todo mundo tem algumas dificuldades financeiras porque extrapolou nas férias na Europa. Mas não é nada grave. O papai vai ajudar.
Então o rico conclui que, na verdade, o pobre é desleixado.
O rico nunca vai na casa do pobre porque é muito longe. O pobre faz viagens e mais viagens para acompanhar a vida social da galera playba. Começa a acreditar que também merece morar numa região mais nobre, com mais opções, mais segurança e melhores paisagens. Mas a conta não fecha de jeito nenhum!
Aí o pobre resolve deixar o barraco pra trás. E descobre que morava numa caixinha de fósforo. A casa não é muito grande, mas é digna. O pobre transborda de dignidade. Mas é preciso fazer alguns cortes.
Assim, o pobre para de sair, gasta menos com comida, compra ainda menos roupas e se frustra todo mês por se empenhar tanto no trabalho e não receber um salário digno.
A essa altura, o pobre nem cogita mais se aventurar na área em que se formou. Ele odeia seu emprego, mas está preso nele. Afinal, as contas não vão se pagar sozinhas.
A bola de neve de dívidas só aumenta e chega a um nível crítico quando o pobre sofre de burnout e perde o emprego.
"Saí de casa cedo demais."
O pobre decide dar um passo para trás e arrumar um barraco. Todos os conhecidos se chocam. O pobre se sente um lixo. Para se sentir menor pior, acaba alugando um buraco intermediário. Não é muito digno, mas não é na favela!
De lá, o pobre não sai mais. E o pobre começa a se divertir pela vizinhança.
O rico acha ótimo! "Ele redescobriu suas raízes! Toda cultura tem valor!"
O que o rico não entende é que o pobre NÃO TEM ESCOLHA. É obrigado a consumir o que pode pagar. Então é jogo gostar de cultura popular, afinal, é acessível. Se quiser se apropriar de culturas de elite vai arrumar um problemão: além de ser conhecido na vizinhança como o esquisitão, vai viver solitário e frustrado por não poder arcar com o estilo de vida que gostaria.
Merdas acontecem e o pobre acaba tendo filhos. O maior orgulho dele é que, apesar de tudo, ele não mora na favela. Só que as crianças da favela têm bibliotecas, aulas gratuitas de inglês, música, artesanato, informática, esportes... Orgulhoso, o pobre matricula seu filho numa escola particular acessível. Na real, a escola é bem ruim. Mas o pobre se sente bem ignorando esse detalhe e contando aos colegas do trabalho que seu filho estuda num colégio particular.
Chega o ENEM. Os estudantes da favela fazem cursinho gratuito. O filho do pobre tem que se virar com o que tem. O pessoal da favela ganha bolsa integral nas melhores universidades particulares se tiverem bons resultados. Alguns até conseguem entrar nas públicas aproveitando as vagas que sobram depois que todos os alunos dos colégios públicos de elite e todos os negros da classe média ocupam as vaguinhas das cotas. O filho do pobre tá fodido. Tem que disputar as vagas sem cota mesmo, porque seu pai foi idiota o suficiente para acreditar que pagar aquela escola de merda faria alguma diferença. Até fez, só que pra pior.
O classe média de esquerda, engajado, acha que a vida do pobre melhorou muito. Eu continuo vendo o mesmo que sempre vi: pobre não tem escolha, é mão-de-obra barata e só vai ter a chance de ser feliz quando aceitar de uma vez por todas que ele é mero figurante no mundinho protagonizado pelos ricos. Capitalistas que são, eles veem melhoras porque aparentemente mais dinheiro está circulando pelas mãos dos pobres. Só que eles não consideram que o capitalismo só é vantajoso para quem tem capital em excesso. Ter um pouco mais de dinheiro só te deixa com o gostinho amargo de imaginar o quanto deve ser bom estar no topo da pirâmide capitalista.
Dinheiro não compra dignidade.
Justiça social, só vai começar a existir quando o pobre tiver:
1) a garantia de que, não importa o que aconteça, terá onde dormir confortavelmente e com segurança (não, não estou falando de uma casa com vários cômodos);
2) um espaço para armazenar objetos pessoais (mais uma vez, não falo de uma casa com vários cômodos);
3) a possibilidade de tomar banho quente, com a devida higiene e privacidade, sempre que for necessário (não precisa ser um banheiro inteiro para ser seu 24h por dia - não passamos tanto tempo lá);
4) a possibilidade de fazer suas necessidades de maneira higiênica e com privacidade, sempre que for necessário;
5) a possibilidade de se locomover em seu país de maneira rápida, confortável e segura;
6) a garantia de obter diariamente os nutrientes e substâncias necessárias para a sua saúde;
7) atenção individualizada às suas emoções e necessidades pessoais (afinal, somos todos únicos);
8) acesso ao padrão de qualidade educacional que desejar, nas áreas do saber que desejar (ninguém quer aprender tudo sobre tudo!);
9) apoio para seguir a carreira que desejar, quando achar apropriado (quantos pobres desistem das carreiras que amam porque percebem que é inviável chegar lá);
10) 8 horas diárias de sono - e a possibilidade de abrir mão de parte delas para investir o tempo no que bem entender;
11) Atenção médica e respeito quando estiver doente.
Dinheiro não é necessário. O problema é que, se o pobre não precisar de dinheiro, não vai se sujeitar aos subempregos dos quais a classe média quer distância!
Ahhhh, então não convém mudar tanto assim, né? Vamos manter as pequenas ajudas em dinheiro, funcionando como iscas para atrair essas pessoas para o capitalismo selvagem. Afinal, de que adiantaria ter excesso de dinheiro num mundo em que o dinheiro não teria valor algum?
Na imaginação do rico, o pobre passa fome e entra para o crime porque a barriga tá roncando. Mas a verdade é que o pobre te vê com um IPHONE, acha maneiro e resolve que vai ter um também! Sabe quanto tempo levaria para ele conseguir um com o salário mínimo dele e abatendo as contas? É muito mais rápido e fácil roubar logo de você! Essa é a triste realidade!
Bom, ele também quer ter um carro como o seu, uma camiseta maneira como a sua, um tênis caro como o seu... E ele merece, afinal, ele é tão ser humano quanto você. Por que ele não pode?
Enquanto todos não puderem ter as mesmas oportunidades, não terá justiça. Os ricos precisam entender que dignidade vale muito mais do que dinheiro.