Um monte de caracteres. Pra dar preguiça de ler.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Vida plana

O "eu virtual" se faz cada vez mais presente num mundo onde cada vez trabalhamos mais e realizamos mais atividades. Sem a mesma dedicação de outrora, afinal, frequentemente são atividades paralelas e simultâneas. A possibilidade de anular distâncias criou uma renovação no conceito de "comunidade", que anteriormente continha certo valor geográfico. Atualmente, "comunidade" se refere a um grupo com algum interesse em comum. Mesmo que seus membros se encontrem cada um num país diferente ou apresentem outras diferenças brutais. A proximidade não precisa mais ser física. É suficiente se acontecer em âmbito virtual.

"Não sou eu. É um holograma."

A popularização de páginas pessoais, blogs, fotologs, perfis e mais uma infinidade de possibilidades de posicionamento em rede tem mudado profundamente as relações sociais. Se há 20 anos atrás era preciso telefonar e manter um diálogo que exigia a atenção para conversar com alguém, hoje é possível conversar virtualmente em tempo real. A diferença é que não é tão instantâneo assim. A emissão da mensagem é instantânea. Porém, a recepção dessa mensagem depende da vontade do receptor. Uma janela do msn piscando ou um scrap no Orkut ilustram bem essa idéia. Posso continuar escrevendo aqui ou clicar na janela para visualizar o que me foi dito. Posso entrar no Orkut para saber se me deixaram algum scrap ou esperar mais algumas horas. O universo virtual oferece autonomia no processo de emissão e recepção de mensagens. A mensagem é emitida no momento que for conveniente ao emissor, independente da disponibilidade do receptor. E, por sua vez, o receptor escolhe o momento que considera mais apropriado para se dedicar à recepção das mensagens.

Páginas de perfil podem ser acessadas a qualquer momento, independentemente do dono do perfil estar conectado ou não. O usuário de um perfil online constrói uma descrição pessoal através desse espaço virtual e, com isso, cria a ilusão de que está constantemente acessível, já que é possível ter contato com a sua individualidade e dirigir-lhe a palavra em qualquer momento, de qualquer ponto ligado à rede.

"Só dá valor quando perde."

A ilusão de que as pessoas estão constantemente acessíveis cria uma certa sensação de conformismo e descaso quanto à manutenção de vínculos afetivos. A garantia da disponibilidade, mesmo que virtual, provoca uma desvalorização das relações presenciais. Com isso, grande parte das relações interpessoais acontece em ambientes virtuais, intercaladas por gaps variáveis e de forma consideravelmente superficial, já que o usuário da rede nunca se dedica a uma atividade só e divide sua atenção entre diversas atividades paralelas, minimizando a atenção direcionada a cada uma delas e, consequentemente, a absorção completa dessas experiências.

"A intimidade é uma merda."

A possibilidade de encontrar uma pessoa virtualmente a qualquer momento permite a procrastinação desse momento. A expressão da língua inglesa "take for granted" define perfeitamente a relação que se estabelece entre pessoas virtualmente acessíveis. É a mesma relação que se estabelece, por exemplo, nas relações entre familiares ou pessoas com avançado nível de intimidade. A preocupação em alimentar e otimizar as relações próximas desaparece completamente, dando lugar a um menosprezo inconsequente que reduz consideravelmente o feedback oferecido nas relações interpessoais de base. Outra característica desse descuido é a frieza com a qual as relações mais íntimas são tratadas nos ambientes virtuais. O contato através de uma tela luminosa é usado como alternativa ao contato sensorial. Imagens bidimensionais, textos e (com menor frequência) elementos audiovisuais substituem os estímulos sensoriais tridimensionais do contato visual direto, da audição direta (sem efeitos ou compressão), do tato, do olfato e (por que não?) do paladar. A experiência real é estruturalmente mais completa que a virtual, pois exige mais da percepção humana, característica que intensifica sua solidez enquanto experiência de vida.

"Ser humano, um ser social"

Não há como negar que o ser humano é um ser social e precisa estar inserido numa sociedade para se sentir coerente enquanto animal. A necessidade de se relacionar com outros seres humanos é facilmente provada ao analisar casos de sofrimento causado por solidão, sofrimentos causados pela perda de pessoas queridas e sofrimento causado pelo esvaziamento resultante de determinadas privações sociais. O ser humano precisa biologicamente do contato físico. E precisa psicologicamente do contato social. O contato virtual é o maior empecilho para a realização de um contato físico casual. E a ausência física de pessoas também pode provocar uma reação de abstinência social subconsciente.

"Cada um no seu quadrado"

O resultado dessa "nova ordem virtual" é o isolamento de pessoas em frente às telas de computadores, onde realizam uma enorme variedade de atividades e podem chegar a casos extremos de dedicação exclusiva à vida virtual. A divulgação da própria vida na rede permite que qualquer pessoa interessada na vida de alguém tenha acesso a essas informações sem que se faça necessário que a pessoa em questão se prive de suas atividades a ponto de propagar seu cotidiano entre os interessados. Com a possibilidade de contar a história apenas uma vez para o máximo de pessoas possível e poupar o tempo de deslocamento aos encontros "ao vivo" que deixam de acontecer, o homem virtual pode realizar uma quantidade maior de atividades, manter uma quantidade maior de vínculos afetivos (superficiais, até porque acontecem através da superfíe de um monitor) e, assim, acreditar-se (virtualmente) realizado. Porém, ao deixar o contexto real em segundo plano, também esquecemos que o nosso corpo pertence ao mundo real e que é esse mundo real o responsável pela manutenção da nossa vida biológica. Sem vida biológica, a produção intelectual, que é tão facilmente disponibilizada em âmbito virtual, deixa de acontecer. A existência em registro pode ser extremamente satisfatória quando não se considera a efemeridade da vida real. Apesar de ideologicamente válida, a eternidade virtual não é capaz de imortalizar a nossa capacidade de produzir e sentir. Sem consciência, não há vida. Pelo menos para a gente. E, na posição de espectadores da nossa vida, é o nosso olhar que determina se existimos ou não. Nossas realizações e tudo que deixamos pra trás são apenas produtos da nossa existência. E é isso que oferecemos ao mundo: produtos. Nada mais compatível com a realidade capitalista do que priorizar o produto em vez da presença. Afinal, o consumo de um produto é definitivo, oferece a relação de posse que nenhuma relação presencial poderia oferecer. E, como a escassez de relações reais provoca uma carência excessiva, a sensação de que a posse é mais satisfatória do que a construção imprevisível funciona como o principal combustível do sistema capitalista.

Os Jetsons

A rápida evolução tecnológica tende a tornar os ambientes virtuais cada vez mais acessíveis e amplos. Com isso, o universo virtual fica cada vez mais irresistível. A exposição pessoal no ambiente virtual supre a necessidade individual de expor a própria vida como forma de concretizá-la, de torna-lá real. Afinal, se ninguém viu, não aconteceu. Em contrapartida, a acessibilidade às exposições individuais de outras pessoas também supre a necessidade de absorção de experiências alheias. No fundo, ainda se trata de uma relação de troca. Porém, não acontece mais de forma direta. A troca é indireta e depende da iniciativa dos envolvidos no processo. Podemos considerar que há um certo "socialismo" de exposições pessoais. Todos podem se fazer acessíveis a todos. É como se todos pudessem ser de todos. Isso só não se concretiza absolutamente porque muitas pessoas optam por não se expor. Porém, temo que essa evolução seja um caminho sem volta, já que a sociedade se molda às próprias alterações essenciais. Se existe a possibilidade de se dedicar, mesmo que virtualmente, a mais tarefas, pode-se evoluir para uma cultura na qual esse comportamento seja massificado e até mesmo cobrado. O resultado disso seria a intensificação de relações estritamente virtuais. Temo que o mundo real se torne apenas uma extensão do mundo virtual, com finalidade meramente de preservação da espécie. Pode ser muita inocência da minha parte, mas acredito que não é possível se realizar através do consumo e que a única forma de realização efetiva acontece através das relações afetivas e das cumplicidades profundas. O monitor de um computador é um instrumento que nos permite acesso, inegavelmente, a uma amplitude de informações que nunca teríamos acesso numa vida inteira. Porém, não podemos esquecer que um objeto com tais proporções nunca será capaz de substituir todas e quaisquer experiências que o mundo pode oferecer. Existe muita coisa atrás do monitor. E dos lados também. Assim como atrás, em cima e embaixo.

Insight cibernético