Príncipe Retalhado
Era uma vez uma jovem muito bela e solitária. Um belo dia, após uma situação trágica, essa jovem conheceu um belo rapaz sem defeitos e os dois se apaixonaram, casaram e viveram felizes para sempre.
Cool. ¬¬
Ok, vamos aos fatos. A mocinha dessa história não passa de uma virgem encalhada. Possivelmente por causa de um excesso de timidez ou por falta de maturidade mesmo (afinal, não existe essa coisa de crescer de acordo com a vontade do mundo). Também existem as possibilidades de (um) a garota ter sido superprotegida pelos pais e (dois) apenas ser chata mesmo. Anyway, apesar de seu nobre coração e de seu envolvimento em atividades filantrópicas (claro, elas sempre são heroínas sociais), o fato é que a monotonia passa longe da visibilidade - ponto de partida de qualquer relacionamento, amoroso ou não. Um mínimo de visibilidade é crucial para ser identificada por um príncipe encantado que provavelmente está a quilômetros de distância. Mas o legal é que nos contos de fada, apesar de toda a chatice, apesar de toda a rotina e apesar de todo isolamento, as mocinhas acabam "esbarrando" no príncipe encantado. Ou seja, no tal cara sem defeitos. É como se o incidente amoroso fosse uma compensação por todo o vazio dedicado a uma vida inteira. "Fique sozinha, espere, seja boazinha, espere, espere mais um pouco"... e TCHARAN! Olha o príncipe encantado ali, caído aos seus pés, antes mesmo que você complete seus vinte aninhos! Claro, porque você já viu alguma mocinha de contos de fadas com cabelos brancos, rugas ou qualquer outra marca de idade? Na-na-ni-na! Conclusão: mantenha-se chata, submissa e virgem, que daqui a pouco abre um buraco no chão e, dele, sai o príncipe encantado num cavalo branco (talvez até montado num unicórnio, vai saber?). Sim, senhor(a)! Como não?
Mas como a tentação é grande, muitas meninas não resistem às investidas do capiroto. E o que acontece com elas? Automaticamente se transformam em monstras mal-educadas, feias e grosseiras, e tratam de descontar suas frustrações nas pobres virgenzinhas. Essas mulheres comuns são punidas pela maldição de só atraírem os homens problemático, do tipo que sempre sofre de amores pelas "princesinhas", mas não arrancam nem um mero olhar de rabo-de-olho de suas musas perfeitas. Sim, eles também são amaldiçoados. Terrível, não? E ainda fica pior.
A variação mais extrema da desgraça feminina é se transformar na madrasta (também conhecida como bruxamá). São poucas as mulheres com tamanha resistência ao sofrimento que conseguem chegar a esse estágio. A maioria acaba se convertendo para o cristianismo antes disso. Ou cometendo suicídio. Ou até mesmo transferindo sua afetividade a outras mulheres. Muitas também preferem a solidão, numa tentativa fadada ao fracasso de recuperar a magia que se atribui às virgenzinhas passivas. Mas, voltando às madrastas, essa categoria é composta por mulheres que foram do grupo intermediário, o das mulheres comuns. A diferença é que elas conseguem casar com um príncipe encantado, mesmo depois da maldição. E, claro, não se dão bem. Normalmente, ao casar com as bruxamás, os príncipes já perderam o encanto junto com suas princesas, que provavelmente morreram de forma trágica e deixaram herdeiros por criar, fardo que a madrasta acaba sendo obrigada a assumir. E isso aumenta ainda mais a desgraça das mulheres que chegam a este estágio. O príncipe (que a essa altura não passa de um rei-fantoche) não é perfeito, mas sua filha - pura e casta - carrega toda aquela energia de virgem, atraindo a atenção de todos os machos disponíveis na área. Mas de nenhum príncipe encantado - ainda. E a bruxamá morre de ciúmes disso.
O ponto é:
"A beleza está nos olhos de quem vê e a ignorância é uma benção."
Analisando mais a fundo, como a mocinha sabe que encontrou o príncipe encantado? Como é que ela sempre acerta? Bom, sem base comparativa fica fácil de acreditar que qualquer um seja perfeito.
"Mas eles não vivem felizes para sempre?"
Porraniúma! Vivem felizes para sempre enquanto a castidade se mantém! A castidade é eterna. Quando acaba, a mulher se transforma em uma monstra eternamente amaldiçoada e a castidade descansa em paz junto com a princesa que não existe mais. Apesar da mudança, o príncipe se satisfaz com a idéia de possuir uma mulher e a transforma no seu reino particular. E, assim, passa a se sentir um rei. E também vira outra pessoa, um homem cheio de defeitos comum.
É daí que vem essa coisa de "príncipe encantado": são futuros reis. Desse jeito aí que eu contei ali em cima. E só.
Os príncipes só se tornam encantados a partir da falta de parâmetros comparativos. Até porque esse príncipe encantado é sempre alguém que apareceu repentinamente e ainda não se conhece profundamente. Eles preferem as inocentes, lógico, porque a capacidade delas de notar seus defeitos é praticamente nula e até que elas tenham tempo de aprender tudo que precisam, eles já as conquistaram, foram coroados e reinam soberanos e absolutos. Com o tempo,surge a insegurança. A mulher fica mais esperta (ou talvez apenas menos inocente) e começa a notar certas imperfeições. É aí que o homem trava uma verdadeira guerra para manter o poder, que pode ser através de três técnicas:
1. Adestramento. Eles manipulam suas parceiras a fim de levá-las de volta à submissão perdida. As técnicas aplicadas variam desde isolamento social e cultural, ameaças de abandono e até mesmo à violência verbal e física.
2. Fingimento. Requer uma boa dose de cara-de-pau, técnicas de interpretação e bons álibis por parte do monarca. Também requer uma boa dose de boa vontade da mulher e um certo grau de inocência remanescente. Com isso, o homem finge estar satisfeito e vai sassaricar com as monstras, numa busca incessante por novas conquistas, seja elas para expansão territorial ou para colonização. Neste caso, o homem vê a estratégia como investimento, pro caso da queda da sua monarquia não transformá-lo novamente em plebeu.
3. Abdicação. Como o próprio nome diz, o homem prefere abandonar o reino e recomeçar do zero. É mais raro entre conservadores e conformistas, porém mais comum entre artistas, cientistas e intelectuais em geral. Para abdicar, o homem precisa de uma motivação externa à vida amorosa e transfere toda a sua energia a essa motivação. Com isso, a perda do poder não significa tanto, já que o mocarca constrói um novo reino baseado em realizações individuais e não em subjugação.
A falta de provas e exemplos concretos de sucesso amoroso eterno leva à conclusão de que príncipe encantado não existe. Quanto mais relacionamentos, maior a base para constatar que todos os homens têm defeitos e qualidades. O importante é o que eles oferecem, se são os defeitos ou as virtudes. A boa vontade é maior que tudo e uma relação só funciona enquanto as duas partes envolvidas querem que funcione. Infelizmente, acho bastante difícil que duas pessoas consigam resistir às rotinas e monotonias por uma vida inteira, em perfeita sincronia. O tal "homem perfeito", pra existir, teria que ser um Frankenstein composto por vários pedaços de vários homens diferentes, unidos em laboratório. Não teria muito appeal. Mas o mais legal nisso tudo é que, mesmo com todas essas certezas empíricas, as pessoas ainda tentam. E não existe nada mais perfeito do que um relacionamento construído a partir da vontade mútua de ser feliz e fazer feliz. Não é tão complicado assim. Quiçá.
Todo mundo tá casando. E eu, surtando.