Ser, coisa
De repente desperta. Simplesmente, de um instante para outro, toma consciência de que há algo ao seu redor. Percebe a existência, o presente. Mesmo sem fazer idéia do que é tudo aquilo. Mesmo sem perceber que também é.
Esse estágio da existência, no qual se é sem ao menos saber o que, é uma etapa que sempre fica esquecida num passado remoto. Mas há um determinado instante em que as coisas começam a se conectar. Surge o pensamento, a consciência.
Estímulos externos passam a gerar sensações. As primeiras percepções, ainda descompromissadas e confusas, surgem através da comparação, de maneira não-linear. A percepção está ali, acusando que existe algo. Algos, coisas, muitos, diferentes. É possível ver, ouvir. Existem imagens, formas, cores. Existem sons, timbres. Existem texturas.
A cada instante é possível listar uma quantidade maior de percepções de existências. Comparativamente, percebe-se que o mundo não é uma coisa só. Existem coisas diferentes ali. Formas e cores, agrupados dentro de um limite específico, compondo certas unidades específicas.
Não existe a menor preocupação por trás de todas essas percepções. Não há objetivos, não há regras, não há nomes, nem definições. Mas há diferenças de tamanhos. E, assim, surge a percepção de espaço. Quanto mais perto, maior as coisas aparentam ser. Quanto mais próximo, maiores são as variações de coisas visíveis.
A aproximação permite o desfrute das possibilidades táteis. As texturas se revelam como mais uma característica capaz de separar as coisas e atribuir a elas uma especificação unitária dentro daquela coisa toda inicial. É possível ver, é possível ouvir e é possível sentir.
Com um acúmulo maior de informações comparativas, surge a percepção do movimento. Alguns se movem. Outros, não. Estão em toda a parte, o parado e o em movimento. Assim como o silêncio e o barulho. Assim como o escuro e a luz. E como as formas, cores e todo o tipo de variedade sensorial.
A aproximação se mostra mais interessante que o distanciamento. De longe, as possibilidades se reduzem. Assim como os movimentos se mostram mais intrigantes que a estaticidade.
Porém, nem todo movimento é igual. Existem várias possibilidades de movimento. Isto significa, então, que existem várias possibilidades de coisas que se movem.
O pensamento começa a apresentar características lineares. “Se uma coisa é assim e a outra não é, então existe uma diferença entre elas”. Ao posicionar os movimentos numa linha de oposição, conclui-se que existem movimentos que deslocam e movimentos outros.
O deslocamento permite aproximação e distanciamento das coisas em relação a outras coisas. “Mas e os outros movimentos?”
Esses movimentos diferentes dos de deslocamento são executados por partes específicas das coisas. E interagem com outras coisas, ou partes das coisas, próprias ou outras. Portanto, o movimento que não muda a coisa de lugar tem uma razão de ser.
“Razão de ser?!?!?!”
É aí que surge a percepção de que também é. Ser, intransitivo. E de que deve haver uma razão na própria existência. “Será que todos são da mesma forma? Será que existe uma forma única de ser?”
As revelações continuam. Essa rede de percepções cada vez esclarece mais. E quanto mais claro, mais aparecem questões a desvendar.
A bagagem acumulada até então começa a produzir insights. Percebe-se que alguns movimentos dos não-deslocantes são repetitivos, enquanto outros variam.
“Então algumas coisas só fazem uma coisa. Outras coisas fazem várias coisas”. É o protótipo da noção de vontade. Comparando movimentos, percebe-se que a vontade é algo característico das coisas que realizam movimentos aleatórios, sem regularidade. Surge, assim, a noção de vida.
O rápido desenvolvimento das linhas de raciocínio leva à conclusão de que existem diversos seres vivos, dos mais diferentes tamanhos, cores e formas. Esses seres têm vontades e executam movimentos para satisfazê-las. E passa a reparar nas peculiaridades dos seres vivos. São cheios de partes, mas todas trabalham em conjunto para o funcionamento do todo. Todos os seres vivos são assim.
A noção de vontade e da vida como alimento dessa vontade traz a idéia de possibilidade de realização de vontades. A ausência de vontades, e dos meios de realizá-las, revela que sua própria existência não é dotada de vida. Tal conclusão é tão reveladora quanto qualquer outra. Não representa um problema.
Mas existe um grupo que vive diferente. Apesar de apresentarem características gerais das outras coisas vivas, eles fazem muitas coisas diferentes e interagem com muitas coisas. Fazem mais coisas dentro de um único instante e são extremamente numerosos. Porém, contrariando toda essa intensidade, parece que não têm vontades. Todos agem de forma muito parecida. Raramente aparentam satisfação. Normalmente aparentam executar movimentos alheios às suas vontades.
A observação dessa forma de vida diferente acrescenta a noção de liberdade, que traz a conclusão de que também não possui tal capacidade.
E acaba. As idéias param de circular. As percepções param de fluir. A consciência se fora. Não chegou sequer a saber o que é, ou era. Não descobriu os sentimentos, a sociabilidade. Não chegou a saber o que é trabalho, desejo, dinheiro. Nem fome, medo ou prazer. Não chegou a saber o que é certo e errado, nem o que é bom ou ruim. Mas, pelas condições, deixar de perceber não significa nada. Ainda mais agora.